domingo, 30 de abril de 2006

Entregando os pontos
No Planalto


Ser brasileiro é eleger um Fernando Henrique e ser governador por outro, é comprar um Lula e entalar com 40 sapos, é festejar a chegada da esquerda à sala de estar e lamentar que ela a tenha transformado em depósito de dejetos, é dormir com o Zé Dirceu e acordar com o Bob Jefferson, é ouvir o não vi nada e concluir que amarraram o dono à vontade do burro, é observar a pose de Júlio César e descrer que ele possa ter ignorado uma legião de Brutus, é cogitar o impeachment do impensável e lembrar que o vice é o imponderável, é recordar a velha freirinha oposicionista e lastimar que ela tenha caído na vida, é confiar a salvação ao Congresso e descobrir que os deputados salvaram primeiro a conta bancária, é sintonizar na TV Câmara para ver a guilhotina e dar de cara com a impunidade, é ligar a TV de novo e testemunhar a desfaçatez, é ligar a TV uma terceira vez e assistir à dança do escárnio, é pretender a ética e obter a falta de estética, é descobrir que estão querendo te fazer de idiota e se dar conta de que encontraram farto material, é verificar que a democracia está com a cabeça a prêmio e desistir de ligar a TV, é ouvir o ruído dos ovos quebrando e deplorar que só 40 tenham provado do omelete, é procurar um herói e observar que ninguém fugiu a tempo, é buscar um limite e encontrar o exagero, é reclamar competência e ver que todos fazem o pior o melhor que podem, é fitar o ministro e descobri-lo criminoso, é buscar proteção no Estado e obter violação, é observar a estatura do homem público e agachar-se à procura de alguma altivez, é analisar o novo ministério e perceber que só mudaram os cúmplices, é perscrutar o passado e enxergar o Serjão, é olhar novamente para trás e ver o Ricardo Sérgio, é recuar mais ainda no tempo e praguejar o Cabral, é apelar para as profundezas da memória e ter saudades daquela fase casta e imaculada de Sodoma e Gomorra, é ouvir o discurso emplumado da lavagem ética e descobrir na seqüência que a promessa tem conta na Nossa Caixa e veste prêt-à-porter, é mirar o futuro e antever a disputa do seis contra o meia dúzia, é divisar o futuro de novo e descobrir-se condenado à esperança, é especular sobre uma terceira via e cair no cruzamento que leva ao topete mineiro ou ao safadinho carioca, é procurar a luz no fim e constatar que roubaram o túnel, é dar meia-volta e flagrar-se no centro do insolúvel, é reler os dez mandamentos e concluir que resultaram em fabulosas idéias, é rezar e descobrir que Deus não merece existir, é apelar para a paciência e verificar que ela está furiosa, é buscar as próprias culpas e só enxergar o inferno nos outros, é sentar à mesa e notar que o diabo não amassou pão suficiente, é juntar os carnês e concluir que a vida está acima das suas possibilidades, é desfilar de carro e sentir vergonha do privilégio, é ver a pobreza no semáforo e subir o vidro, é fitar o menino miserável e não saber se ele é o seu problema ou se você é o problema dele, é ser assaltado e ficar em dúvida se foi a vítima ou o culpado, é chamar a polícia e verificar que ela é o ladrão, é gritar pela Justiça e se dar conta de que ela mora longe demais, é procurar um coelho no mato e descobrir que dali só sai raposa, é sonhar com um musical e acordar numa comédia de costumes, é despertar sobressaltado e ter saudades do pesadelo, é esperar por dias ruins e topar com dias piores, é procurar forças para reagir e entregar, finalmente, os pontos.


Escrito por Josias de Souza


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( O Grito- Edvard Munch)

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